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Incômodos


“- Não te incomoda o fato de saber que a última pessoa que te beijou antes de cair nossa parede não fui eu, foi só mais uma outra na tua conta de garotas do bar?”

Quando sentaram a beira da piscina, tarde da noite, e conversaram sobre todo tipo de assunto menos o que realmente importava naquele momento, ela arregalou o olho e enxergou o que sempre quis ver mas não conseguia: ele chorando. Não quis se precipitar, baixou a cabeça e esperou ele terminar de falar, chorando. E ele disse a ela que não ficasse com medo, porque o mundo era muito grande e tinha muita gente e muita vida e muita coisa. E ela concordou.

Leu na camisa dele a palavra “hard” e era isso mesmo, difícil. Tão difícil que não imaginava o tanto de coisa que seria deixada para trás. Seguiu-se o passar das horas e o voar das corujas, que sobrevoavam baixo naquela noite, tão baixo que ele se assustou. “Não te beijo”, ele disse, “Não te beijo porque não quero levar mais tempo para te esquecer. Porque agora te vejo como amiga e não quero confundir as coisas”. Ela assentiu.

Passaram a noite discutindo sobre a importância e o significado do beijo. Questões filosóficas como “Beijar é só o encontro dos lábios” a “Beijar é compromisso”, o que ambos sabiam que não era. Beijavam outras pessoas além de um ao outro. Beijos da madrugada, beijos na solidão, beijos eternos e passageiros. Ela olhou nos olhos castanhos do rapaz e passou a mão para trás da nuca dele e se perderam por ali, entre olhares Breves e sem fluxo. O fluxo já tinha parado de correr meses antes, quando ele já não se fazia mais presente nem por pensamento.

O silêncio os acompanhava junto com a dúvida. E agora? Dou-lhe o último beijo ou deixo ele pensar que não vai ser o último, mas sim o próximo? Um gosto de quero mais vai ficar implícito enquanto o tempo trabalha? Será que depois de tudo ele não quis beijar porque sabia que assim que beijasse ia desistir daquela bobagem inteira? Não era um erro.

Nunca se sabe quando vai ser o último beijo. Pode ser daqui um mês ou uma década. Entre o mês e a década quantos tantos outros beijos caberão entre eles? Cabelos bagunçados, narizes pontiagudos, queixos se movendo de outro jeito. Começaram a se perder no momento em que se encontraram aquela noite. Por entre as incertezas e faltas de maturidade seguiram sem beijar, deixaram definido que o último beijo foi aquele antes dele entrar no avião e não voltar mais. Ele não precisava mais dela por perto, tinha concluído tudo, absolutamente tudo naquela cidade e não via mais motivos de estar com ela. E ela sempre soube disso.

Imaginava-o dançando com a ruiva no salão, rodando ela e fazendo com que caísse em seus braços para no final beijar, clichê assim, como ele sempre achou. Sentou na espreguiçadeira, jogou os braços pra trás da cabeça e não disse o que devia ter dito naquele momento: “Não te incomoda o fato de saber que a última pessoa que te beijou antes de cair nossa parede não fui eu, foi só mais uma outra na tua conta de garotas do bar?”

Ele entrou no carro, deu um beijo na cabeça dela e Dalí sumiu, para sempre.



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