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Faltou

Ih, faltou. Faltou a roupa espalhada pela casa, a comida quente na panela, a colcha da cama revirada. Faltou prato e copo em cima da pia, sorvete no congelador, água no bebedouro. Faltou a mesa de centro da sala decorada, a cueca no cesto de roupa suja, o varal armado no quintal. Faltou juntar meus fios de cabelo do ralo do banheiro, a escova de dente usada dentro do espelho. Ih, faltou. Faltou eu te dar a nota de compras do supermercado, faltou comprar o presente da Michele, faltou ligar pra Karina e desejar feliz aniversário. Faltou comprar um sofá maior, fazer cafuné até as duas da manhã, ouvir a nova música do Two door cinema club. Faltou aquela viagem para ver seus pais, como estão seus irmãos? Faltou te dizer que eu acordei de madrugada porque o gato da vizinha estava miando no quintal e depois correu pelo telhado fazendo um barulho que parecia que estavam tentando invadir a casa.
Faltou cobrir o bolo de chocolate com café que minha tia me ensinou a fazer só para quando tu chegasses. Faltou te devolver a vaca de pelúcia que tu me deste no nosso primeiro aniversário de namoro. Faltou estender a toalha molhada de cima da cama, desentupir o vaso sanitário e jogar uno com o Felipe. Faltou fazer o leite quente para passar teu soluço, o ventilador ligado na tomada, teu computador em cima da mesa da sala de jantar. Faltou o teu carro estacionado na garagem da minha tia, a chuva passar para gente poder ver o novo filme do Star wars no cinema. Ih, olha, voltou a chover. Belém, né? Pensei que já tinhas acostumado. Faltou, menino, faltou.
Sobrou. Sobrou roupa dentro das gavetas, comida fria na mesa, a cama arrumada. Sobrou copo descartável e prato de papel na lixeira depois da festa, brownie com sorvete, pizza na geladeira. Sobrou espaço na rede, cabelo na toalha, escova de dente na pia. Sobrou o silêncio na madrugada, meia sua nos meus sapatos, meus pés frios sem os teus para aquecê-los. Sobrou uma vontade doida de roer as unhas, uma bateria de escola de samba dentro do meu peito, a Ivete fazendo o circuito Barra-ondina pelo meu corpo, começando pela boca do estômago e indo até o centro do meu cérebro. Sobrou documento com teu endereço, memórias bagunçadas e confusas com a sensação de “será que eu vivi isso mesmo?”. Sobrou café no bule, leite frio na garrafa, torrada integral na vasilha. Sobrou tempo para pensar, suas cores estendidas no varal, seu rosto passando pelos meus olhos quando não eram mais para passar.
Sobrou minha ansiedade em saber para onde tu ias sábado à noite, Sobrou preocupação com o futuro, folheto de apartamento no meu carro, a senha do teu facebook, tua conta do Final Fantasy no meu computador. Sobrou todo lugar que nós passamos, o pôr-do-sol na estação das Docas, os hambúrgueres no Batistão. Sobrou espaço no guarda-roupa, carregador e fone de ouvido debaixo do colchão.
Sobrou eu.

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